1ª Parte
"Nosce te ipsum"
Esse filme é extremamente filosófico. Na cena em que o herói, Neo, é levado pelo guia, Morfeu, para ouvir o oráculo. No filme há uma sibila, a mulher que recebeu o oráculo (isto é, a mensagem) e que é, ela também, o oráculo (isto é, a transmissora da mensagem). Essa mulher pergunta a Neo se ele leu o que está escrito sobre a porta de entrada da casa em que ele acabou de entrar. Ele diz que não. Ela lê para ele as palavras, explicando-lhe que são de uma língua há muito desaparecida, o latim.
O que está escrito? Nosce te ipsum. O que significa? "Conhece-te a ti mesmo". O oráculo de a Neo que ele e somente ele poderá saber se é ou não aquele que vai livrar o mundo do poder da Matrix e, portanto, somente conhecendo-se a si mesmo ele terá a resposta.
Poucas pessoas que viram esse filme compreendem exatamente o significado dessa cena. Ela é a representação, no futuro, de um acontecimento do passado, ocorrido há 23 séculos, na Grécia.
Havia, na cidade de Delfos, na Grécia antiga, um santuário dedicado ao deus Apolo, deus da luz, da razão e do conhecimento verdadeiro, o patrono da sabedoria. Sobre o portal de entrada desse santuário estava escrita a grande mensagem do deus ou o principal oráculo de Apolo: "Conhece-te a ti mesmo". Um ateniense, chamado Sócrates, foi ao santuário consultar o oráculo, pois em Antenas, onde morava, muitos diziam que ele era um sábio, e ele desejava saber o que era um sábio e se ele poderia ser chamado de sábio. O oráculo, que era uma mulher (a sibila), perguntou-lhe: "O que você sabe?". Ele respondeu: "Só sei que nada sei". Ao que o oráculo disse: "Sócrates é o mais sábio de todos os homens, pois é o único que sabe que não sabe". Sócrates, como todos sabem, é o patrono da filosofia.
2ª Parte
Neo e a Matrix
Se voltarmos ao filme Matrix, podemos perguntar por que ali
foi feito o paralelo entre Neo e Sócrates. Comecemos pelo nome das duas
personagens masculinas principais: Neo e Morfeu. Esses nomes são gregos. Neo
significa “novo” ou “renovado” e, quando dito de alguém, significa “jovem na
força e no ardor da juventude”.
Morfeu pertence à mitologia grega: era o nome de um
espírito, filho do Sono e da Noite, que possuía asas e era capaz, num único
instante, de voar em absoluto silêncio para as extremidades do mundo. Esvoaçando sobre um ser humano ou pousando
levemente sobre sua cabeça, tocando-o com uma papoula vermelha, tinha o poder
não só de fazê-lo adormecer e sonhar, mas também de aparecer-lhe no sonho,
tomando a forma humana. É dessa maneira que, no filme, Morfeu se comunica pela
primeira vez com Neo, que desperta assustado com o ruído de uma mensagem na
tela de seu computador. E, no primeiro encontro de ambos, Morfeu surpreende Neo
por sua extrema velocidade, por ser capaz de voar e por parecer saber tudo a
respeito desse jovem que não o conhece.
Várias vezes Morfeu pergunta a Neo se este tem sempre a
impressão de estar dormindo e sonhando, sem nunca ter certeza de estar
realmente desperto. Essa pergunta deixa de ser feita a partir do momento em
que, entre uma pílula azul e uma vermelha oferecidas por Morfeu, Neo escolhe
ingerir a vermelha (como a papoula da mitologia), que o fará ver a realidade. É
Morfeu quem lhe mostra a Matrix, fazendo-o compreender que passou a vida
inteira sem saber se estava desperto ou se dormia e sonhava porque, realmente,
esteve sempre dormindo e sonhando.
Qual o poder da Matrix? Usa e controlar a inteligência
humana para dominar o mundo, criando uma realidade virtual na qual todos
acreditam. A Matrix é o feitiço que se virou contra o feiticeiro, a
inteligência artificial que destrói a inteligência humana, porque só subsiste
sugando o sistema nervoso central dos humanos.
Antes que a palavra computador
fosse usada corretamente, quando só havia as enormes máquinas militares e
de grandes empresas, falava-se em “cérebro eletrônico”. Por quê? Porque se
trata de um objeto técnico muito diferente de todos aqueles até então
conhecidos pela humanidade.
De fato, os objetos técnicos tradicionais ampliavam a força física dos seres humanos (o
microscópio e o telescópio aumentam a força dos olhos; o navio, o automóvel e o
avião aumentam a força dos pés; a alavanca, a polia, a chave de fenda, o
martelo aumentam a força das mãos; e assim por diante). Em contrapartida, o “cérebro
eletrônico” ou computador amplia e mesmo substitui as capacidades mentais ou
intelectuais dos seres humanos.
A Matrix é o
computador gigantesco que escraviza os homens, usando a mente deles para
controlar seus sentimentos e pensamentos, fazendo-o crer que é real o que é
aparente. Vencer o poder da Matrix é destruir a aparência, restaurar a
realidade e assegurar que os seres humanos possam perceber e compreender o mundo
verdadeiro e viver realmente nele. Todos os combates realizados por Neo e seus
companheiros são combates mentais entre os centros de sensação, percepção e
pensamento humanos e os centros artificiais da Matrix. As armas e tiroteios que
aparecem na tela são pura ilusão, não existem, pois o combate real não é
físico, e sim mental.
3º Parte
3º Parte
Neo e Sócrates
Por que as personagens do filme
afirmam que Neo é “o escolhido”? Por que
estão seguras de que ele será capaz de realizar o combate final e vencer a
Matrix?
Porque ele era um pirata
eletrônico, alguém capaz de invadir programas, decifrar códigos e mensagens,
mas, sobretudo, porque ele também era um criador de programas de realidade
virtual, um perito capaz de rivalizar com a própria Matrix. Por ter um poder semelhante
ao da Matrix, Neo sempre desconfiou de que a realidade não era realmente tal
como se apresentava.
Sempre teve dúvidas sobre a
realidade percebida e, secretamente, questionava o que era a Matrix. Essa
interrogação o levou a vasculhar os circuitos internos da máquina (tanto assim
que começou a ser perseguido por ela como alguém perigoso), e foram suas
incursões secretas que o fizeram ser descoberto por Morfeu.
Por que Sócrates é considerado o
“patrono da filosofia”? Porque jamais se
contentou com as opiniões estabelecidas, com os preconceitos de sua sociedade,
com as crenças inquestionadas de seus conterrâneos. Ele costumava dizer que era
impelido por um espírito interior (como Morfeu instigando Neo) que o levava a
desconfiar das aparências e procurar a realidade verdadeira das coisas.
Sócrates andava pelas ruas de
Atenas fazendo perguntas aos atenienses: “O que é isso em que você acredita?”,
“O que é isso que você está dizendo?”, “O que é isso que você está fazendo?”.
Os atenienses achavam, por exemplo, que sabiam o que era a justiça. Sócrates
lhes fazia perguntas de tal maneira que, embaraçados e confusos, chegavam à
conclusão de que não sabiam o que era a justiça. Os atenienses acreditavam que
sabiam o que era a coragem. Com suas perguntas incansáveis, Sócrates os fazia
concluir que não sabiam o que era a coragem. Os atenienses acreditavam que
sabiam o que eram a bondade, a beleza, a verdade, mas um prolongado diálogo com
Sócrates os fazia perceber que não sabiam o que era aquilo em que acreditavam.
A pergunta “O que é?” era o
questionamento sobre a realidade essencial e profunda de uma coisa para além
das aparências e contra as aparências. Com essa pergunta, Sócrates levava os
atenienses a descobrir a diferença entre
parecer e ser, entre mera crença
ou opinião e verdade.
Sócrates era filho de uma
parteira. Ele dizia que sua mãe ajudava no nascimento dos corpos e que ele
também era um parteiro, mas não de corpos, e sim de almas. Assim como sua mãe
lidava com a matrix corporal, ele lidava com a matrix mental, auxiliando as
mentes a libertar-se das aparências e a buscar a verdade.
Como os de Neo, os combates
socráticos eram também combates mentais ou de pensamento. E enfureceram de tal
maneira os poderosos de Atenas que Sócrates foi condenado à morte, acusado de
espalhar dúvidas sobre as idéias e os valores atenienses e, com isso, corromper
a juventude.
O paralelo entre Neo e Sócrates
não está apenas no fato de que ambos são instigados por “espíritos” que os
fazem desconfiar das aparências, nem apenas por ambos consultarem um oráculo e
receberem como mensagem o “conhece-te a ti mesmo”, e nem mesmo porque ambos
lidam com matrizes.
Podemos encontrá-lo também ao
comparar a trajetória de Neo no interior da Matrix com um dos mais célebres escritos
do filósofo Platão, discípulo de Sócrates. Essa passagem encontra-se na obra
intitulada A República e chama-se “O
Mito da Caverna”
Com Filosofia - Marilena Chaui